MPF vai recorrer: Lula não ficará livre do processo do Sítio de Atibaia


Foto: reprodução/TVT

Por Wálter Fanganiello Maierovitch – jurista, professor e comentarista político

No famoso pátio das arcadas da Faculdade de Direito do paulistano largo de São Francisco, no final dos anos 1960, ouvia-se uma piada sobre dissensos decorrentes de dificuldades interpretativas. E era sobre lei dada como divina. Mais especificamente, a envolver um dos Dez Mandamentos, que muitos afirmam haver sido recebidos pelo hebreu Moisés. “Não cobiçar a mulher do próximo”, afirmava o mandamento.

Na piada, o caso era de confissão a um amigo fraterno —ambos operadores do direito— sobre a secreta paixão de um deles pela esposa do vizinho. Aquele destinatário da confissão reprovou e reagiu com a tal lei divina: “Não cobiçar a mulher do próximo”. O apaixonado, de pronto, reprovou a interpretação. Reagiu: próximo, não, não mesmo.

Como excludente de ilicitude, frisou estar o vizinho a trabalhar numa obra distante e que só retornava à residência do casal no final de cada mês. Não considerava o esposo como próximo.

Na decisão recorrível de rejeição da denúncia por lavagem de dinheiro e corrupção, ativa e passiva, contra o ex-presidente Lula e outros, a juíza Pollyanna Kelly Maciel Medeiros Martins Alves, da 12ª Vara Federal Criminal de Brasília, aproveitou, também, para declarar a extinção de punibilidade pela prescrição dos acusados com mais de 70 anos: por lei, o lapso temporal é contado pela metade do estabelecido aos não septuagenários.

A decisão de rejeição nada tem a ver com a bem reconhecida nulidade —por flagrante falta de imparcialidade do então juiz Sergio Moro— do processo conhecido por “tríplex do Guarujá”.

O processo apelidado de “sítio de Atibaia”, com condenações em duas instâncias, foi anulado por decisão monocrática do ministro Edson Fachin e confirmação, por maioria de votos, do plenário do STF (Supremo Tribunal Federal).

Fachin anulou todas as decisões condenatórias relativas a Lula por incompetência absoluta do juízo 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba. Para o ministro, o STF já havia fixado orientação, a partir de um julgado relatado por Dias Toffoli, sobre a incompetência do juízo de Curitiba em casos que não diziam respeito diretamente com os desvios da Petrobras.

O ministro Fachin, nessa decisão, não tocou no velho e vigente princípio processual penal chamado de perpetuação da jurisdição (perpetuatio jurisdictionis) . Deveria ter lembrado, pois o processo do “sítio de Atibaia” havia sido iniciado e tramitado quando o STF reconhecia a conexão com os desvios na Petrobras.

Como nos regimes democráticos o STF tem a última palavra, nada mais a discutir a respeito da nulidade descoberta, depois de muitos anos, pelo ministro Fachin. Sob uma ótica mais azeda, o STF possui legitimidade constitucional para errar por último.

Tecnicamente, a juíza Martins Alves apressou-se. Ficou assentado que o STF, e nem o relator, decidiriam a respeito do aproveitamento de provas e atos processuais não decisórios. Atenção: atos não decisórios, formais, de impulso.

Em outras palavras, cabia à juíza de primeiro grau, por ter o representante do Ministério Público ratificado a denúncia pura e simplesmente, ter decidido sobre os atos e provas aproveitáveis. Em especial as delações premiadas.

No popular, a juíza Martins Alves “passou o pano” em tudo. A partir do nulo total, a denúncia ficou, evidentemente, sem sustentação, o que tecnicamente se chama de falta de justa causa.

Caso considerasse as provas juntadas com a denúncia criminal, deveria recebê-la, pois, na fase inicial do processo, vale o princípio do “in dubio pro societate”. Referido princípio é, por ocasião da sentença de mérito, trocado pelo “in dubio pro reo” (na dúvida, em favor do réu).

Expondo melhor, se o Ministério Público, titular da ação penal pública, não se desincumbe do ônus de comprovar de forma induvidosa a acusação feita na denúncia, o magistrado julgador absolve com base no supracitado “in dubio pro reo”, até por ser o acusado presumidamente inocente.

No caso “sítio de Atibaia”, a anulação realizada pelo STF foi de natureza processual e, por tal razão, não declarou nulas provas nas quais a denúncia criminal do MP se apoiou.

Num pano rápido à la Millôr Fernandes, sem partidarismos e sem entrar no mérito da responsabilidade criminal do ex-presidente Lula e dos demais denunciados, a juíza Martins Alves precipitou-se. Assim, a sua decisão poderá —e vamos nos lembrar da piada acima—- ser modificada por força de recurso.

*UOL

Postado em 24 de agosto de 2021