Teve facada e barco à deriva: Apóstolo Valdemiro usa má fase como chamariz de igreja

Não há facada, barco à deriva, naufrágio, ataque de igreja concorrente, operação da Polícia Federal, processo por aluguel atrasado ou acusação de porte ilegal de armas que tire o bom humor do apóstolo Valdemiro Santiago, 53.
Todos episódios que viraram propaganda, boa ou má, para um dos líderes evangélicos mais influentes do Brasil, ao lado de nomes como Silas Malafaia e Edir Macedo.
Hoje sua igreja, a Mundial do Poder de Deus, tem estimados 4.500 templos e três deputados: Missionário José Olímpio (DEM-SP), Francisco Floriano (DEM-RJ) e Franklin Lima (PP-MG).
No dia 9/1, o apóstolo deu, literalmente, seu sangue por ela. 

Quando a vida lhe dá um limão, você faz uma limonada. Quando um ajudante-geral desfere três golpes de facão em Valdemiro, o religioso vai à TV pedir dinheiro.
Com alegados problemas mentais, Jonatan Higino, 20, atingiu pescoço e costas do apóstolo com uma lâmina de 35 centímetros, num culto televisionado. Dois dias e 25 pontos depois, Valdemiro usou o caso para incentivar fiéis a doarem R$ 8 milhões. 

Ele já conhece o enredo: “Quando a imprensa dá a notícia [do atentado], coloca lá: ‘Valdemiro nem bem se recuperou e foi pedir oferta’”.
Entre seculares (como evangélicos chamam aqueles de outra ou nenhuma religião), a estratégia foi absorvida como um entre tantos exemplos de pastores inescrupulosos que exploram sua base “coitadinha”.
Para evangélicos, esse tipo de visão escancara preconceito e condescendência de uma elite intelectual que os despe de autonomia para decidir o que é melhor para eles. 


Segundo Valdemiro, o dinheiro solicitado banca um mês de custos da Rede Mundial, seu canal na TV fechada.
Clubes de futebol têm “patrocínio do sócio-torcedor” (que pagam mensalidade ao clube em troca de benefícios), e isso ninguém estranha, compara o apóstolo são-paulino.
“O Palmeiras arrecadou milhões assim, e todo mundo aplaudiu. Eu pago só neste canal aí R$ 8 milhões. O preconceito leva o repórter a separar uma coisa da outra. Ontem mesmo estive com jovens da cracolândia. Isso [obras de caridade] tem um custo.”

À DERIVA
Passados nove dias da agressão, Valdemiro voltou ao noticiário: ficou por horas perdido no litoral paulista, após pane em sua lancha. O Corpo de Bombeiros divulgou foto da equipe de resgate abraçada com o pastor sorridente.
O apóstolo conversou com a Folha duas semanas após o ataque a faca, em sua sala na sede da Mundial, um prédio com 800 funcionários no Brás (região central de São Paulo) e piscina interna para batizar recém-convertidos à igreja.
Valdemiro criou a Mundial, uma costela da Igreja Universal do Reino de Deus, em 1998, após se desentender com o bispo Macedo, “com quem eu jogava bola, recebia em casa”.

A Mundial seguiu a mesma linha neopentecostal, com destaque para curas miraculosas. Há cultos como a Terça-feira do Milagre Urgente, e seu líder compartilha na internet testemunhos como “CÂNCER REMOVIDO PELA MÃO DE JESUS”.

“Já vi mortos ressuscitarem. Fazia algum tempo que não respiravam”, afirma. “Só que não sou eu, mas Deus quem faz o milagre.”
Em sermão gravado, um pastor da igreja diz que a camisa que Valdemiro usou no dia do atentado tem poderes divinos. “Tá aqui, o sangue dele tá aqui na camisa. Vou passar no manto… Vocês vão tocar no manto… E vão receber milagres extraordinários.”

O curativo no pescoço afetou o estilo –o mineiro criado na roça abriu mão do chapéu de vaqueiro, sua marca (na internet, réplicas à venda por R$ 54,90).
Valdemiro conta que, hospitalizado, recebeu “dez ligações” de Geraldo Alckmin. O governador confirma um telefonema “para desejar força” ao “amigo de 15 anos”.
Discordou quando a apresentadora Sônia Abrão disse não perdoar o homem que o esfaqueou. Torce por sua conversão: “Se Deus quiser, você vai fazer matéria com ele aqui na minha igreja”.

Elenca entre os amigos o padre Zezinho e o cardiologista Roberto Kalil (“a mulher dele vive dizendo: ‘Leva ele para pescar, ninguém tira o Kalil do hospital’”). O comediante Dedé Santana e a primeira metade da dupla sertaneja Rick e Renner aparecem com ele em retratos de seu escritório, decorado com um cavalo de bronze com mais de três metros de altura, presente da filha.

Antes de descobrir a vocação religiosa, Valdemiro conta que passou um período “muito perturbado”. Aos 12 perdeu a mãe, que tinha problema no coração. Tentou se matar mais de uma vez. “Pensava que não podia viver mais, um pensamento ruim mesmo. Tinha acesso às armas do meu pai. Tentei me envenenar, na roça se usava muito veneno de rato.”
Mas Deus, afirma, tinha um plano para ele.

LEVANTE
Se em 1980 o IBGE calculava 6,6% de evangélicos num Brasil de maioria católica, hoje o grupo representa 29% da população, segundo o Datafolha. A ascensão não surpreende Valdemiro.
“Vou fazer uma comparação secular: você vai num restaurante e leva uma pessoa querida. É bem tratado, faz bem ao seu paladar. Você volta, a pessoa que você levou volta e leva outra com ela.”
As igrejas evangélicas, acredita, saciam o apetite do brasileiro por ritos mais dinâmicos. Mas, sem uma hierarquia vertical como a do Vaticano, elas se engalfinham na disputa por fiéis.

Valdemiro não se aprofunda na briga com Macedo, a quem chama de “homem de Deus”. Os dois são como apóstolos de Cristo, diz: “Na época do Paulo, ele e Pedro se desentenderam, um foi para um lado, outro para o outro”.
O sociólogo Ricardo Mariano, especialista em igrejas neopentecostais (como a Mundial e a Universal), aponta um diferencial do dissidente. “Valdemiro dá mais ênfase ao carisma, age como mediador divino, as pessoas querem tocá-lo. Na Universal o carisma é institucional, eles até fazem rodízio de bispos para não ‘fidelizar’ o fiel, igual a gerente de banco.”

A briga esquentou quando a Record, emissora do ex-amigo Macedo, veiculou em 2012 reportagem associando Valdemiro a uma fazenda de R$ 30 milhões. “Os males, os maiores deles, vêm desses que se dizem irmãos”, diz o apóstolo, que nega a posse.

A Universal foi procurada pela Folha na semana passada, mas não se manifestou até a conclusão desta reportagem.
Outro estranhamento: a Universal dominou a programação do canal 21, do grupo Band, antes locado pela Mundial. A perda de espaço expôs situação financeira complicada para Valdemiro, o que ele também refuta. “Sempre abordo isso aí [com os fiéis]. ‘E a crise? Que crise?’”

Esta crise: a igreja é alvo de processos na Justiça paulista por aluguel atrasado. O mais recente é de dezembro –uma ação de despejo “por falta de pagamento cumulada” no valor de US$ 70.368,24.

Por outro lado, há quem aponte bonança. Em 2013, a “Forbes” o incluiu numa lista dos pastores mais ricos do Brasil. Estimou que sua rede valha US$ 220 milhões (R$ 700 milhões).
Valdemiro ri. Pessoalmente, “não tenho nem US$ 1 milhão”, diz. Quem tem é a igreja. “A casa na qual moro, o carro que uso, o helicóptero em que voo, é tudo dela.”

Para ele, a campanha de difamação demonstra uma intolerância que persiste há mais de 2.000 anos. “Você acredita em Jesus? Por que será que atribuíram coisas falsas a ele? Porque ele tinha sucesso. Se a minha igreja tivesse dez membros, você acha que eles iam se incomodar?”

APÓSTOLO POP
Valdemiro é assíduo no noticiário.
Em 1996, ainda como bispo da Universal, escapou de um naufrágio nas águas de Moçambique. Na época, a Folha reportou como Valdemiro nadou até uma ilha, a cerca de 500 metros de onde estava o barco, para chamar socorro.
Ele pesava 153 kg, antes de uma cirurgia de redução de estômago na qual tirou 3,5 metros de intestino. Diz que, com ajuda divina, superou tubarões-brancos, água-viva, correnteza e câimbra. “Outros pastores [a bordo] foram comidos por tubarões de até oito metros”, relatou depois.

Passados sete anos, foi preso numa blitz em Sorocaba (SP), por porte ilegal de armas. No porta-malas, uma escopeta e duas carabinas. Ele diz que eram todas registradas e para caça. “Aquilo lá foi armação.”
Aproveita a deixa para criticar o desarmamento da população. “Veja os EUA! Falam do sujeito armado que entra na escola e mata seis. Aí aqui matam cem todo dia, e isso só na favela do Rio”, exagera.

Outro momento sob holofotes: em 2012, pela Operação Porto Seguro, a Polícia Federal apreendeu nove jatinhos comprados no exterior sem pagamento de impostos, parte de um esquema de corrupção que envolvia políticos. Uma das naves, avaliada em R$ 22,5 milhões pela PF, era arrendada pela Mundial.
O desembargador Fausto De Sanctis, que escreveu um livro em inglês sobre igrejas e crimes financeiros (“uma perspectiva judicial do abuso da fé”), cita “gangues de pastores” que desviavam dinheiro da Mundial.

Igrejas não têm de pagar Imposto de Renda sobre dízimos, o que dificulta a fiscalização, afirma De Sanctis à reportagem. “É muito difícil rastrear o dinheiro porque existe grande circulação de moeda em espécie e pouca prestação de contas. Forma-se um meio propício para a lavagem de dinheiro.”
Para Valdemiro, a aliança automática entre ilicitudes e evangélicos é uma visão estreita de parte do Brasil que ainda tem dois pesos, duas medidas para lidar com as duas maiores religiões do país, a dele e a católica.
Questiona reportagens que o chamam de “autointitulado apóstolo”. “O papa não decidiu ser papa. Cardeais da igreja dele votaram para isso. Por que não respeitam eu ter sido eleito apóstolo pela maioria da minha igreja?”

Folha de São Paulo


Postado em 7 de fevereiro de 2017